Aborto em Campo Grande: dez mil mulheres a serem interrogadas?
Posted: 06 Apr 2008 01:36 PM CDT
Na última quinta-feira (03/04), o juiz da 2ª Vara do Tribunal do Júri do Mato Grosso do Sul, Aloísio Pereira dos Santos, atendeu ao pedido do promotor de Justiça do estado, Paulo César dos Passos e decidiu interrogar quase 10 dez mil mulheres pela prática de abortos criminosos realizados na Clínica de Planejamento Familiar, situada no Centro de Campo Grande.
Matéria de João Naves de Oliveira, na seção Vida& do Estado de São Paulo de 4/04, informa que segundo Passos:
"São pessoas arroladas em procedimentos abortivos considerados crimes, ocorridos entre 1º de agosto de 1999 e 2001, que devem ser qualificadas e interrogadas. Logicamente, se forem consideradas culpadas, serão indiciadas. A pressa é para evitar a prescrição do delito, que ocorre em oito anos."
Em abril de 2007 foi instaurado inquérito contra a médica Neide Mota Machado, proprietária da Clínica, onde "foram realizados milhares de abortos criminosos, durante 20 anos, conforme denúncia do Ministério Público Estadual e investigações da Polícia Civil", diz a matéria. Desde maio do ano passado 26 pessoas já teriam sido julgadas e, na atual etapa, são mais 9.800 acusadas. O caso está sob a responsabilidade da delegada do 2º Distrito Policial, Regina Márcia Rodrigues Mota, que disse ao jornal:
"Existem casos de mães que levaram filhas para abortar e também namorados e amantes de algumas mulheres que fizeram abortos na clínica. Estamos estudando a organização de uma força-tarefa para concluir os inquéritos e remetê-los à Justiça o mais breve possível".
Judiciário não se sente confortável em processar por aborto
Mulheres de Olho conversou com a advogada Miriam Ventura. Ela considera legítimo o processo, lembrando que é dever da polícia, diante de uma denúncia, investigar e apurar o caso, desde que haja um dispositivo legal que configure o fato como criminoso. A advogada afirma não ser correto deixar de investigar uma denúncia e permitir a prescrição do crime denunciado, mas ressalta também que, de modo geral, isto é o que tem acontecido nestes e em outros casos, quando não há interesse de se punir, e pode indicar que os sistemas de segurança e judicial não se sentem confortáveis em processar uma pessoa que cometeu o aborto, como também aponta algumas pesquisas jurídicas sobre o tema:
"Existe a lei, aborto é crime. Portanto, a polícia está correta em investigar no caso de denúncia, concluir o inquérito e mandar para o Ministério Público caso haja elementos para abertura do processo criminal".
O que ocorre é que determinadas leis ficam adormecidas, como se houvesse tolerância à sua não-aplicação, e a advogada diz que, na verdade, isto é muito comum no Brasil, não apenas nos casos de aborto:
"Temos um tipo de Justiça que é seletiva, em que se processa o que se considera mais prioritário ou conveniente em determinado contexto social e político. Essa é uma caracetrísita do sistema criminal e penal brasileiro".
Miriam Ventura acha exagerado este número de quase dez mil mulheres a serem interrogadas e levanta algumas preocupações quanto ao processo, que observa estar avançado. Terá sido legal a obtenção das informações sobre os procedimentos médicos da clínica? Caso tenham sido analisados os prontuários, que são documentos sigilosos, seria necessária uma ordem judicial. Será que as ações policiais e do Ministério Público para colher as provas respeitaram os procedimentos judiciais e as garantias constitucionais para tal? Terá havido algum erro de procedimento, ou abuso de autoridade? Quanto a dar conta de todos os casos, Miriam lembra que são comuns na Justiça as forças-tarefa para acelerar a prestação jurisdicional. Por exemplo, é comum se "fechar uma determinada Vara, suspendendo audiências e deixando de atender as partes para se evitar prescrições, ou examinar processos urgentes, considerando o grande número de processos e pouco número de funcionários".
Opinião pública
O desconforto da Justiça, identificado pela advogada Miriam Ventura, encontra eco na opinião pública brasileira, que embora se coloque majoritariamente contra a descriminalização do aborto, aceita com facilidade a interrupção da gravidez nos casos permitidos pela lei (risco de vida da mãe e gravidez resultante de estupro) e rejeita a prisão de mulheres por aborto, mesmo concordando que a prática deva permanecer como crime. A taxa de rejeição da prisões de mulheres por aborto é um dado que precisa ser também dimensionado.
Hoje a Folha de São Paulo publicou nova pesquisa de opinião, apontando o aumento da taxa de pessoas que querem que a lei seja mantida como está: "Sete em cada dez brasileiros, praticamente, defendem que a lei de aborto continue como está. Segundo pesquisa Datafolha, 68% dos brasileiros querem que a lei não sofra qualquer mudança".
A pesquisa não perguntou se as pessoas querem que as mulheres cumpram a pena prevista, que é de prisão de um a quatro anos. Mas confirmou o que tem se verificado em pesquisas anteriores: "Quanto mais elevada a escolaridade, maior é o apoio a mudanças na lei".
A opinião pública é também sensível a campanhas, e o texto da Folha de S.Paulo reconhece que "O aumento da taxa dos que são contrários a flexibilizar a lei de aborto pode ter alguma relação com a campanha que a Igreja Católica move contra esse tipo de prática no Brasil". (esta matéria está disponível aqui para assinantes do jornal)
Mulheres pobres em desvantagem
Ultimamente têm sido freqüentes denúncias por aborto provocado, feitas no âmbito hospitalar. Exemplos ocorridos no Rio de Janeiro trazem detalhes perversos, como algemar as acusadas ao leito na enfernaria, tratá-las com extrema hostilidade e dificultar seu acesso à defesa. De modo geral, o que se percebe é que as mulheres que dispõem de recursos ou de bons contatos conseguem escapar do cerco, o que não acontece com as mulheres que não dispõem de recursos e tendem a sair mais prejudicadas, em particular na constituição de provas de sua inocência. Conversamos sobre isto com Miriam Ventura, que lembrou:
"As mulheres pobres detidas por aborto muitas vezes só conseguem um defensor para acompanhar seu caso depois de três semanas presas. Esta é uma característica perversa das iniquidades sociais e, sobretudo, da seletividade do processo criminal, que alcança mais fortemente ou mesmo somente as pessoas que não possuem recursos para contratação de uma assistência jurídica qualificada e específica".
O que fica, como tema para reflexão, é se a lei brasileira que criminaliza o aborto está coerente com o que se passa no cotidiano de vida das pessoas. Outra reflexão seria sobre a adequabilidade de incluir, como indiciados nos inquéritos, os homens envolvidos na gravidez, familiares que relegam ao abandono jovens e adolescentes que engravidam, empresas que pressionam suas empregadas para que não engravidem e o Estado, que nem sempre garante os meios e as informações necessárias para não engravidar.
"Criminalizar o aborto resolve? Vai pensando aí."
Este é o nome da campanha de Ipas Brasil, cujo VT tem tudo a ver com esta matéria. Recomendamos assistir pela internet. Para isto clique aqui.
Leia também matéria da Folha Online aqui.
Angela Freitas/ Instituto Patrícia Galvão
terça-feira, 8 de abril de 2008
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